Debruçado
sobre a mesa, com os olhos voltados para a janela da cozinha. Estava ele,
solitário, lembrando dos tempos em que enfrentou o mais poderoso dos arcanjos.
Estar só não era e nunca foi um problema.
Por
mais que quisesse esquecer aquela batalha sangrenta, nada podia fazer. Aquelas
lembranças lhe inundavam a mente, assim como fizeram os mares na época do
dilúvio, que aliás, agora lhe era claro ter passado também por esta parte da
história.
Inevitavelmente,
lembrar da batalha, o fazia lembrar da única mulher que amou. Fora criado para
defender e não para sentir, mas algo deve ter acontecido no processo de sua
criação, pois os sentimentos em seu coração eram tão fortes quanto os de um
simples ser humano.
Tão
absorto que estava, não percebeu o dia passar. A escuridão da noite invadira os
seus aposentos, portas e janelas estavam todas abertas ainda, mas nada o tirava
daquele transe, ficaria ali ainda por muitas horas.
Lembrou
do dia em que conheceu a filha dos homens que conseguiu fazer despertar o
primeiro sentimento mortal em sua carne. Era linda, tinha olhos verdes,
pareciam refletir o brilho de uma esmeralda. Ela o amou, sim o amou. Pois agora
ela se foi, nunca mais a verá. Nunca mais a tocará.
Em
prantos agora estava, não podia controlar o sofrimento que partia de dentro de
seu coração, sentimento este que antes nunca havia sentido. Estava entregue. Se
quisessem matá-lo, a hora seria essa, pois ele nada faria para impedir, na
esperança de assim poder rever sua eterna paixão.
Enquanto
os ponteiros do relógio davam infinitas voltas em torno de seu eixo. Os
pensamentos dele davam voltas em torno do mundo. Lembrou-se então de seu
arquirrival, aquele que sempre esteve em seu caminho nas suas inúmeras missões.
Fora este o homem responsável pela maior parte de suas cicatrizes.
Se
pudesse voltar no tempo ele pediria para não conhecer sua amada. Não seria tão
feliz quanto foi, mas ao menos não teria se enfraquecido tanto, ou então, se
assim fosse, ela ainda estaria viva.
Gaian,
como era chamado entre os amigos humanos, ergueu-se e saiu de sua casa em busca
de algo que ainda poderia lhe fazer sentido para continuar na Terra. Do
contrário, rumaria de volta para onde venho, o Céu.
Logo
na saída para a rua, viu uma mulher e uma menina, presumia que fossem mãe e
filha. Ficou debilitado ao ver a felicidade estampada em seus rostos, percebeu
que estava sendo egoísta, que a vida não foi feita para tão pouco. O fato de
ter perdido a pessoa que amava não deveria fazê-lo desistir de seus propósitos,
estar vivo era a explicação para tal.
Neste
momento, parou ali mesmo, onde estava. Percebeu o quão humano tinha se
transformado. Antes de viajar para a Terra, para o convívio dos homens, Gaian
não precisava presumir, ele sabia a verdade. Ver aquela mulher e aquela menina
e não saber se realmente eram mãe e filha de sangue lhe mostrou que estava mais
carnal do que nunca. O egoísmo em sua mente lhe deu a certeza desta nova
realidade.
Continuou
sua caminhada sem rumo, agora já não sabia se precisava de algum motivo mais
real do que aquele para voltar as origens. Antes que fosse tarde demais e se
tornasse ser humano por completo. As limitações da carne sempre foram temidas
para os anjos. Deixar todos aqueles poderes psíquicos e sua enorme força física
de lado para sofrer?
Por
outro lado, depois de ter conhecido Isabela, também conheceu o que era o amor,
o sentimento mais gratificante que um humano podia sentir, mas os anjos não. Os
anjos não conheciam o amor. Deus é amado pelos seres humanos, mas os anjos
apenas o adoram.
Sem
perceber, já haviam passado algumas horas desde que saiu de casa. Resolveu
então se preparar para voltar junto ao exército angelical, sua missão na Terra
acabara. Antes mesmo do seu primeiro passo de volta, ouviu um disparo de
revólver, vindo não muito longe dali. Aproximou-se de um beco, entre dois
prédios, para ver o que acontecia.
Encontrou
um homem, alto e aparentemente muito forte com uma arma apontada para cima e o
abordou. O homem se virou para ver quem estava ali, Gaian percebera que ele
amedrontava um garoto de no máximo 16 anos e pediu para que ele se retirasse. O
homem armado apontou a arma para Gaian, permitindo que o moleque escapasse.
Gaian
perguntou ao homem porque precisava de uma arma para amedrontar uma criança se
somente sua aparência já bastava. O homem, sentindo-se ofendido, disparou
contra Gaian, que em um rápido movimento desviou seu corpo, não completamente,
do percurso do projétil. Desviou mais por reflexo, pois anjos são imunes a
armas de fogo.
O
homem não acreditando ter errado o tiro, apertou o gatilho novamente e a arma
falhou. Gaian partiu para cima dele e o pôs contra a parede pressionando-o e
ameaçou dizendo que se encontrasse-o mais uma vez acovardando uma criança ou
algo do tipo, ele mesmo colocaria um fim nele. O homem saiu correndo,
apavorado.
Gaian
procurou ao seu redor, mas não viu o garoto. Tomou rumo para casa e lembrou de
todas as coisas ruins que viu desde que desembarcou na Terra, lembrou das
quantas vezes que os arcanjos queriam acabar com a raça humana, devido ao ódio,
ao rancor, e a tantos sentimentos negativos que só os humanos tinham. Naquele
momento sentiu uma fisgada no braço e percebeu sangue escorrendo. Havia se
ferido e precisava de cuidados médicos.
Para
a sorte dele, ali perto havia um hospital, mas antes que chegasse lembrou-se
que nunca antes havia visto seu próprio sangue. Quando se desviou daquele tiro,
deixando que lhe acertasse de raspão, sabia que poderia deixar aquele disparo
lhe acertar o coração, que nada aconteceria, mas estava enganado, agradeceu ao
seu reflexo e percebeu que o fim do episódio teria sido diferente.
Quando
entrou no hospital, uma enfermeira logo o amparou e lhe deu os primeiros
socorros. Pediram então os seus documentos, mas Gaian informou que havia
deixado em casa. Por alguns minutos ficou ali, sentado, aguardando para ser
liberado. Neste tempo ele voltou a refletir seu passado. Quando foi lhe dada a
missão de ir a Terra e proteger os humanos, junto de outros anjos, recebera
vários documentos, estes lhe serviriam para circular em qualquer parte sem ter
problemas com polícias ou outros tipos de autoridades.
Gaian
levantou-se e disse as enfermeiras que já estava melhor e iria para casa, elas
pediram que ficasse mais um pouco e ele insistiu que não era necessário.
Naquele momento dois policiais entraram pela porta da frente e outro pela porta
dos fundos, procurando por ele. Abordaram Gaian e perguntaram o que tinha
acontecido com o seu braço.
Logo
soube que eram os funcionários do hospital que haviam os chamado, afinal, fora
baleado e estava sem os documentos. Gaian lhes contou a verdade, que abordou um
homem que ameaçava uma criança, então os policiais lhe ofereceram carona para
casa, para que poderia mostrar seus documentos. Obviamente aceitou e assim o
fez.
Chegando
em casa viu a porta arrombada e sabia que algo de errado estava acontecendo. Os
policiais pediram para Gaian se afastar que eles iriam averiguar. Gaian
permitiu, mas ficou receoso. Dois guardas foram pela porta da frente e o outro
pela porta dos fundos, Gaian se perguntou se sempre faziam aquilo.
Antes
que os dois primeiros chegassem à porta da frente, ouviram disparos nos fundos
e, imediatamente, entraram correndo pela casa, Gaian os seguiu e antes que
chegasse os guardas foram atirados contra ele, com o impacto os três encontraram
o chão fora da casa.
De
dentro do recinto aparecia um homem, alto e forte, com aparência demoníaca.
Gaian logo o reconheceu e percebendo os policiais desacordados ergueu-se e se
impôs ao seu eterno rival, Luchér. Era este o homem que matou a sua amada, se
de homem poderia ser chamado. Luchér era sem dúvida o único ser que Gaian
queria ver aniquilado, mas por suas próprias mãos.
Partindo
para cima dele, Gaian resgatou toda a sua raiva guardada e investiu contra seu
inimigo, mas foi em vão, com apenas um movimento Gaian foi detido e ainda
arremessado contra a viatura que estava estacionada logo em frente a sua
moradia. Foi então que se lembrou do ferimento no braço, sabia que agora era um
mero ser humano e não restava-lhe mais nada divino em seu corpo agora carnal e
mortal.
Luchér
sabia disso e por isso que estava ali. Antes, quando Gaian ainda era um ser
angelical, as várias batalhas entre eles nunca tinham um vencedor, pois suas
forças se equilibravam tanto que os confrontos só terminavam porque alguém se
intrometia. Mas naquela que estava por vir, seria diferente. Luchér com toda
sua força demoníaca ainda intacta não teria pena do agora humano e fraco Gaian.
Partindo
em contra-ataque para cima de seu agressor, Gaian mais uma vez não teve
sucesso, Luchér o abateu facilmente, jogando-o contra a sua própria residência,
derrubando o que ainda sobrava de pé.
Agora
era Luchér que avançava, parou a poucos centímetros de onde Gaian estava
deitado e lembrou-o das suas tantas batalhas que nunca haviam tido um fim, lembrou
que nunca o vira assim ferido e sangrando, acrescentou que na verdade nunca
vira qualquer um de seus adversários naquele estado, o mais humilhante
possível.
Luchér
também lembrou a Gaian de seu maior erro, se envolver com humanos. Que era por
causa disso que agora seria, enfim, derrotado. Gaian respondeu em tom irônico,
de que estava preparado para morrer, que não se arrependera de nada que havia
feito, disse até que faria tudo novamente. Não se importava que o seu maior
inimigo fosse o seu algoz, pois o que queria era ver sua amada novamente.
Luchér
ergueu seu punho em direção a Gaian e disse que então seria misericordioso e
realizaria o seu desejo. Gaian fechou os olhos e aguardou o seu fim. Passaram
alguns segundos e nada aconteceu, quando abriu os olhos novamente viu seus
amigos Sitael e Rochel derrubarem Luchér num golpe em conjunto e disseram para
Gaian procurar Isabela, pois ela estava viva.
Gaian
não acreditou e quis detalhes, mas os dois insistiram para que se retirasse,
pois não havia tempo para explicações. Disseram que Luchér não conseguiu
matá-la, pois Gabriel Arcanjo o impediu. Erguendo-se e recuperando todas as
suas forças, Gaian viu seus ferimentos cicatrizarem-se instantaneamente, foi
quando Luchér investiu um golpe contra os três, mas antes disso Gaian trouxe
toda a sua energia para o seu punho e além de conter o ataque do inimigo,
também o nocauteou acabando de vez com ele.
Naquele
momento apareceu Gabriel Arcanjo, com Isabela aos seus braços, desacordada.
Gabriel disse para Gaian que ela estava assim havia muito tempo e que
precisavam fazer algo. Gaian a tomou e pediu para que acordasse, mas nada
aconteceu.
Agora Gaian estava sentido dor novamente, viu
suas cicatrizes voltando, então finalmente percebera. Anjos se tornam humanos
porque passam a sofrer, passam a ser egoístas e passam a sentir dor. Isabela
abriu os olhos e olhando para Gaian ela sorriu. Ele novamente recuperou sua
energia e seus ferimentos cicatrizaram. Foi então que Gaian percebeu que os
anjos também podem amar.
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